Quase um século e meio desde o início da construção e sob a fama de eternamente inacabada, a Sagrada Família, em Barcelona, ganhou data de conclusão. “O templo que nunca será concluído, que está em constante transformação”, conforme descreveu o poeta catalão Joan Maragall, ficará pronto em 2026, um século após a morte do arquiteto Antonio Gaudi, que está enterrado sob sua obra-prima.

A área onde está localizada a basílica sequer existia quando começou a ser construída.

Partiu de ideia de Josep María Bocabella, fundador da Associação Espiritual de Devotos de São José. Católico, ele decidiu pela obra após realizar peregrinação a Roma, em 1872.

Demorou uma década para que encontrasse o terreno ideal na cidade, em região que era agrícola.

A primeira pedra foi colocada em março de 1882, e a igreja viu a cidade crescer ao seu redor nestes 142 anos.

A Sagrada Família foi um projeto ambicioso assumido por Gaudi um ano após início da obra, onde ele decidiu fundir elementos do Modernismo, Art Nouveau e Neogótico. O arquiteto desenhou a estrutura com 18 torres, cada uma simbolizando uma figura bíblica — Jesus Cristo, a Virgem Maria, os quatro evangelistas (Lucas, Mateus, Marcos e João) e os 12 apóstolos.

As bases finais estão em fase de conclusão, incluindo a torre central de 172,5 metros de altura, que a tornará a igreja mais alta do mundo, 10 metros acima da Catedral de Ulm, na Alemanha.

“É uma identidade para Barcelona”, diz a arquiteta Luciana Nogueira, que fez mestrado na cidade.

Gaudí assumiu seu projeto mais importante um ano após início (Crédito:Divulgação )

Guerras e ataques

A basílica assistiu conflitos globais e pandemias, mas o evento que mais a abalou foi a Guerra Civil Espanhola. Em 1936, anarquistas a invadiram, incendiaram a cripta e destruíram o ateliê de Gaudi, onde estavam os modelos de gesso para servirem de guia no restante da obra, já que o líder do projeto faleceu em 1926.

Começou trabalho de resgate dos fragmentos dos originais pelo arquiteto Lluis Bonet i Gari, que mais recentemente foi assumido pelo neozelandês Mark Burry.

Nem tudo foi recuperado, e foi incluído no objetivo de conclusão uma escada de acesso que se estende por dois quarteirões da cidade e que obrigará o deslocamento de mais de mil famílias e diversas empresas alocadas ao lado da igreja. Se realmente confirmada a construção do acesso, a obra se arrastará até 2034, pelo menos.

“Seguimos à risca o plano de Gaudí. Somos os seus herdeiros e não podemos renunciar ao projeto original, que inclui a escadaria”, disse o presidente da organização encarregada de concluir a obra, Esteve Camps.

Já o Presidente da Câmara Municipal de Barcelona, Jaume Collboni, disse ter dúvidas. “Estamos trabalhando com os representantes da igreja, com os residentes e com outras organizações para encontrar a melhor solução. Barcelona quer garantir o direito à habitação e minimizar o número de pessoas afetadas.”

O advogado e representante de um grupo de protesto local, a Associação dos Afetados pela Sagrada Família, Salvador Barroso, disse estar tomando providências: “A Câmara decidirá”.

Interior da basílica mostra a mistura de Modernismo, Art Nouveau e Neogótico (Crédito:Rieger Bertrand )

Com ou sem escada, o certo é que cairá o mito de que a igreja é uma obra projetada para nunca ser concluída. Isso vem do propósito inicial de que deveria ser financiada exclusivamente por doações de pecadores arrependidos, o que tornava muito duvidosa a possibilidade de um dia chegar à meta necessária.

Mas com o turismo em massa, a arrecadação da basílica dá e sobra para a realização plena do projeto — ela recebe cerca de 5 milhões de turistas por ano, que renderam 127 milhões de euros no ano passado. Com esse caixa, bastou pouco mais de metade (52%) destinados à construção e 26% à gestão para programar a data de entrega.

Querida por tantos, que a transformam no 11º monumento mais visitado do mundo, a basílica não apaixonou a todos.

O pintor espanhol Salvador Dali defendia que a obra deveria permanecer eternamente inconclusa: “Seria uma traição terminar a Sagrada Família sem o gênio. Deixe-a permanecer lá, como um enorme dente podre”.
George Orwell, autor do livro 1984, disse considerá-la “um dos edifícios mais hediondos do mundo” e lamentou que “os anarquistas demonstraram falta de gosto por não a terem explodido quando puderam”.

“Além do centenário da morte de Gaudí, será o ano que a cidade sediará a UIA (União Internacional de Arquitetos). Mas perderá o encanto de ser a obra inacabada mais importante do mundo”, diz Luciana Nogueira. O que é realmente estranho na história é que a construção foi ilegal durante 137 anos, até 2019, quando foi finalmente emitida uma licença de construção pela Câmara Municipal de Barcelona.